Entre tantas experiências que marcaram minha vida profissional hoje vou escrever sobre uma turma de progressão com que trabalhei no ano de 2003 em uma escola estadual de nossa cidade.
O desafio me foi colocado pela direção da escola em virtude de que eu fazia, na época, especialização em psicopedagogia - abordagem clínica e institucional, uma vez que o objeto do estudo da psicopedagogia é justamente o não aprender.
Foram designados para essa turma, doze meninos retirados de três turmas que formariam o primeiro ano da segunda estapa do ensino fundamental, correspondendo a terceira série do ensino seriado, e que além de não estarem ainda alfabetizados e , portanto, não preparados para acompanhar essa turma, apresentavam também inúmeros problemas disciplinares. Nos anos anteriores esses meninos passavam mais tempo na sala da orientação educacional do que em sala de aula.
Bem, aceito o desafio, parti para a ação. Já no primeiro dia de aula descobri que eram crianças com auto-estima baixíssima, com idades variando de 8 a 12 anos. Disseram-me que estavam naquela sala porque eram burros e não aprendiam. Ali se encontravam crianças com déficit de atenção, dificuldades de concentração, e com vivências que os haviam tornado indisciplinados e debochados.
Sempre acreditei que a educação é um ato de amor e que a aprendizagem se dá a partir de um ato de amor. Pois, como diz Alícia Fernández, "não aprendemos de qualquer um, aprendemos daquele a quem outorgamos confiança e direito de ensinar." Entendi, pois, que precisava conquistar essas crianças e devolver a elas a auto-estima perdida, fazer com que elas se descobrissem inteligentes e capazes de aprender e ter sucesso.
Trabalho difícil. Muitas vezes boicotado por elas. Preparei um planejamento baseado no resgate de valores essenciais a vida: amizade, coleguismo, união, amor... e paralelamente comecei a chamar as famílias em horários depois do expediente, com a intenção de conhecer um pouquinho mais da história de vida de cada um.
Enquanto eu falava em amor e amizade, eles brigavam, desrespeitavam-se, batiam um no outro, eram indisciplinados, não realizavam as tarefas solicitadas, eram barulhentos. E as colegas, que tinham salas próximas e que tinham ficado com aqueles alunos que não abriam a boca, reclamavam do barulho. Foram meses de muito sofrimento, durante os quais não desisti da minha luta... e fui tateando no escuro, tentando tudo o que eu pensava que pudesse trazer resultado.
Esqueci de relatar no início que o objetivo era que se recuperasse com essa turma até a metade do ano conteúdos necessários para que pudessem ingressar nas turmas normais no segundo semestre. E eles nem sequer liam...
Ouvindo o relato das mães que aceitaram o convite e compareceram, fui entendendo um pouco mais aquelas crianças, praticamente todas muito sofridas. Uma mãe me relatou que ela era mãe adotiva dessa criança que tinha sofrido várias tentativas de aborto pela mãe bíológica e que em função disso enfrentava todas essas dificuldades. E ela me disse: Professora, o A. me disse que esse ano ele vai aprender. Eu perguntei a ela porquê e ele me respondeu: Porque agora eu tenho uma profe que me ama. Aí eu perguntei pra ele se a senhora não brigava com ele, e ele me disse: Briga, mas briga porque me ama.
Outra mãe relatou que seu filho estava muito feliz e que dizia em casa que a profe quando xinga a gente chama de lindo e de amor. E a mãe satisfeitíssima com o entusiasmo nunca antes demonstrado pelo filho pela aprendizagem.
Mas havia um longo caminho pela frente. Muitas vezes tive vontade de fugir... sumir.... desanimava... mas seguia em frente. O apoio que eu tinha era basicamente da professora do laboratório de aprendizagem, que os conhecia desde o início da escolarização e sempre me apontava os progressos que ela notava eles... alguns quase imperceptíveis, ainda mais pra mim que tinha grande expectativa. E a vice-diretora que durante muitos anos foi alfabetizadora e que conhecia eles de perto também, e sempre procurava me incentivar a prosseguir. Um vice-diretor da escola, que era de outro turno, mas que uma vez por semana estava a tarde conosco, uma pessoa muito legal e responsável me animava também dizendo pra eu observar bem, que eles estavam mudando, mesmo que fosse aos poucos, e que se eu conseguisse salvar um deles já teria feito um trabalho excelente.
E o trabalho ia seguindo. Uma tarde, cansada de tentar "dar" aula sem ninguém a prestar atenção em mim, tomei uma atitude drástica. Era ínicio de maio. Virei-me do quadro, em silêncio, e comecei a guardar meu material. Isso chamou a atenção das crianças que brincavam... perguntaram o que eu ia fazer e lhes disse calmamente que eu ia embora. Alguns mais cínicos disseram-me que eu não podia fazer isso, que tinha que dar aula para eles. Respondi que podia sim, que havia muitas escolas e turmas que queriam aprender e precisavam de bons professores e que eu estava sobrando ali, já que eles não estavam interessados em aprender. E me dirigi para a porta. Alguns alunos choraram e pediram pra eu voltar, os mais cínicos ficaram me olhando debochadamente. E eu disse tchau e parti para a sala da direção, me achando uma grande tola, já que, sabia teria que voltar pra sala e poderia ter perdido assim o restinho do respeito deles. Chegando lá expus o problema para esse vice-diretor que citei a pouco e ele e a orinetadora foram para a sala e eu fiquei na sala dos professores. Como havia uma estagiária de psicologia dando sopa lá, resolvi contar o meu problema a ela para que não ficasse me julgando maluca.
Ela me fez uma proposta que nunca antes tinha ouvido de uma estagiária de psicologia (longa experiência ao lado delas nas escolas). `Propôs realizar um trabalho com a turma se eu desse um espaço para ela nas minhas aulas. Surpresa e feliz, topei de imediato.
Passado uma meia hora um aluno veio chamar-me e eu fui para a sala onde ouvi o pedido de desculpas da turma e as novas regras combinadas com a equipe. Ouvindo, que eles não podiam nem ir até a lixeira apontar o lápis logo percebi que isso não ia durar muito, mas eles fizeram um esforço e eu voltei para aula.
Desse dia em diante notei uma melhora da turma no geral, as brigas diminuíram e a indisciplina também, eram altos e baixos, mas eu percebia que eles estavam esforçando-se. Na semana seguinte saíram uma tarde em grande alvoroço da minha sala dizendo que a diretora queria falar com eles. Descobri depois que eles foram conversar com a mesma pedindo permissão para organizar uma festa surpresa pra mim. E que quando ela perguntou se eu estava de aniversário eles disseram que não. O motivo da festa era a profe estar muito triste. Questionados sobre minha tristeza responderam que eles não queriam me incomodar, mas que não se aguentavam.
Como forma de incentivo para que eles esforçassem contei a eles que a partir do momento em que dessem conta dos objetivos que tínhamos eles seriam integrados nas demais turmas normais. E logo descobri, que essa era uma faca de dois gumes. Pois uma mãe procurou-me para perguntar se isso era verdade e me contar que ouviu o J dizer para a irmã dele que não podia demonstrar que estava aprendendo porque senão teria que trocar de professora. Aí prometi que não os deixaria, mas que eles tinham que aprender porque do contrário eu ficaria muito mal perante os outros professores.
Sem certezas... mas firme no amor... e nos meus ideais de educadora, eu ia procurando caminhos para vencer esse desafio.
Como terminou essa história??? Bem.. a festinha foi organizada e muito bem organizada por eles em segredo, tinha comida e bebida, presentes e até música. Sim, ouvi a tarde toda tocar a música Velha infância , que eu tinha ensaiado com eles para apresentar no dia das mães. Sim, ousei fazer uma apresentação do dia das mães com essa turminha. Senti a partir daquele dia cada vez mais que eles mudavam e dedicavam-se.. e não pude cumprir minha promessa de ficar com eles até o final do ano. Foram avaliados e como constatou-se que eles podiam acompanhar as outras turmas eles me foram tirados. Dos doze fiquei apenas com quatro que estavam mais fracos e recebi mais uma turma proveniente agora dos mais fracos do segundo ano da primeira etapa, porque tinha passado a ser a consertadora da escola.
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